A partir dos anos 80, observa-se no cenário educacional um progressivo “desinvestimento” no estudo de métodos de ensino, também chamado de “desmetodização”, ou seja, a ausência de método para alfabetizar, visto que emergem publicações, estudos, pesquisas e discussões sobre a Teoria Construtivista de Jean Piaget, as Teorias Sócio-interacionistas de Lev Vygotsky e Henri Wallon, e os estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky sobre a Psicogênese da Língua Escrita.
Estes/as autores/as compreendem que o conhecimento não está nem no sujeito (racionalismo) e nem no objeto (empirismo). Pelo contrário, dá-se pela interação ou pelas trocas do sujeito com objeto (interacionismo), onde ambos se transformam. Assim sendo, a aquisição de conhecimentos depende tanto das estruturas cognitivas do sujeito como de sua relação com o ambiente. Entretanto, vale ressaltar que o construtivismo é uma construção científica que procura extrair leis explicativas dos fenômenos, sem se preocupar com a aplicação prática. Por isso, não é certo afirmar que o construtivismo seja um método de ensino, já que esta teoria psicológica da aprendizagem volta-se para compreensão de como o sujeito aprende e não para a questão de como o/a professor/a deve ensinar.
O construtivismo não é um método de ensino, voltado para como o/a professor/a deve ensinar, pelo contrário, é uma teoria psicológica da aprendizagem que tem como objeto a psicogênese da inteligência e dos conhecimentos, portanto, voltada para como o sujeito aprende.
Antes da entrada do construtivismo no cenário educacional brasileiro, as práticas alfabetizadoras eram (e ainda são) baseadas na memorização das correspondências entre sons e letras, reduzindo a aprendizagem da língua a um conjunto de sons a serem representados por letras. A alfabetização era entendida como mera sistematização do “B + A = BA”, isto é, como aquisição de um código fundado na relação entre fonemas e grafemas. A partir dos estudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, a língua escrita deixa de ser encarada como mera apropriação de um código ou como meros atos de codificação e decodificação de palavras, sílabas e letras, passando a ser concebida como sistema de representação. Estes estudos evidenciam o caminho que as crianças percorrem no aprendizado da língua, definido por elas de psicogênese ou gênese (origem, geração) do conhecimento da escrita. Tais estudos foram baseados na epistemologia genética de Jean Piaget.
A Psicogênese da Língua Escrita é uma abordagem psicológica de como a criança se apropria da língua escrita e não um método de ensino. Portanto, cabe aos profissionais da educação, fazer a transposição desta abordagem para a sala de aula, transformando os estudos em atividades pedagógicas.
Segundo Magda Soares2, a perspectiva construtivista trouxe diferentes e importantes contribuições para a alfabetização.
[...] Alterou profundamente a concepção do processo de construção da representação da língua escrita, pela criança, que deixa de ser considerada como dependente de estímulos externos para aprender o sistema de escrita, concepção presente nos métodos de alfabetização até então em uso, hoje designados tradicionais, e passa a sujeito ativo capaz de progressivamente (re)construir esse sistema de representação, interagindo com a língua escrita em seus usos e práticas sociais, isto é, interagindo com material para ler, não com material artificialmente produzido para aprender a ler; os chamados para a aprendizagem prérequisitos da escrita, que caracterizariam a criança pronta ou madura para ser alfabetizada – pressuposto dos métodos tradicionais de alfabetização - são negados por uma visão interacionista, que rejeita uma ordem hierárquica de habilidades, afirmando que a aprendizagem se dá por uma progressiva construção do conhecimento, na relação da criança com o objeto língua escrita; as dificuldades da criança, no processo de construção do sistema de representação que é a língua escrita – consideradas deficiências ou disfunções, na perspectiva dos métodos tradicionais - passam a ser vistas como erros construtivos, resultado de constantes reestruturações.
De acordo com a Psicogênese da Língua Escrita, o aprendizado do sistema de escrita não se reduziria ao domínio de correspondências grafo-fonêmicas (adecodificação e a codificação), mas se caracterizaria como um processo ativo no qual a criança, desde seus primeiros contatos com a escrita, constrói e reconstrói hipóteses sobre a sua natureza e o seu funcionamento.
Os pressupostos dessa abordagem psicológica são:
· O aprendizado do sistema de escrita alfabética não se reduz a um processo de associação entre grafemas (letras) e fonemas (sons).
· O sistema de escrita alfabética não é um código que se aprende por memorização e fixação, pelo contrário, é um objeto de conhecimento que foi construído socialmente.
A alfabetização na perspectiva construtivista é concebida como um processo de construção conceitual, contínuo, iniciado muito antes da criança ir para escola, desenvolvendo-se simultaneamente dentro e fora da sala de aula. Alfabetizar é construir conhecimento. Portanto, para ensinar a ler e escrever faz-se necessário compreender que os/as alfabetizando/as terão que lidar com dois processos paralelos: as características do sistema de escrita e o uso funcional da linguagem.
(...) a criança procura ativamente compreender a natureza da linguagem que se fala à sua volta, e... tratando de compreendê-la, formula hipóteses, busca regularidades, coloca à prova suas antecipações e cria sua própria gramática. (...) ao tomar contato com os sistemas de escrita, a criança, através de processos mentais, praticamente reinventa esses sistemas, realizando um trabalho concomitante de compreensão da construção e de suas regras de produção/decodificação.
Segundo Emília Ferreiro e Ana Teberosky, as crianças elaboram conhecimentos sobre a leitura e escrita, passando por diferentes hipóteses – espontâneas e provisórias – até se apropriar de toda a complexidade da língua escrita. Tais hipóteses, baseadas em conhecimentos prévios, assimilações e generalizações, dependem das interações delas com seus pares e com os materiais escritos que circulam socialmente. Para a Teoria da Psicogênese, toda criança passa por níveis estruturais da linguagem escrita até que se aproprie da complexidade do sistema alfabético. São eles: o pré-silábico, o silábico, que se divide em silábico-alfabético, e o alfabético Tais níveis são caracterizados por esquemas conceituais que não são simples reproduções das informações recebidas do meio, ao contrário, são processos construtivos onde a criança leva em conta parte da informação recebida e introduz sempre algo subjetivo. É importante salientar que a passagem de um nível para o outro é gradual e depende muito das intervenções feitas pelo/a professor/a.
Os níveis de escrita, segundo a Psicogênese da Língua Escrita:
ESCRITA PRÉ-SILÁBICA: o/a alfabetizando/a não compreende a natureza do nosso sistema alfabético, no qual a grafia representa sons, e não idéias, como nos sistemas ideográficos (como, por exemplo, a escrita chinesa).
Nesta fase, ele/a representa a escrita através das seguintes hipóteses:
· REPRESENTAÇÃO ICÔNICA: expressa seu pensamento através de desenhos, não tendo a noção de escrita no sentido propriamente dito. Escrever é a mesma coisa que desenhar.
· REPRESENTAÇÃO NÃO ICÔNICA: Além do desenho, expressa seu pensamento através de garatuja ou rabiscos (representação não icônica); aqui, a criança inicia o conceito de escrita, mas ainda não reconhece as letras do alfabeto e seu valor sonoro.
LElLETRAS ALEATÓRIAS: já conhece algumas letras do alfabeto, mas as utiliza aleatoriamente, pois não faz nenhuma correspondência sonora entre a fala e a escrita. Para escrever é preciso muitas letras.
TOMATE = ARMSBD
CAVALO = AMTOEL
PÃO = ATROCDG
REALISMO NOMINAL: a criança acha que os nomes das pessoas e das coisas têm relação com os seus tamanhos.
Se perguntar a criança: qual a palavra maior: BOI ou FORMIGUINHA?
Ela dirá: BOI é uma palavra GRANDE e FORMIGUINHA uma palavra PEQUENA, atentando para o tamanho dos animais.
A superação do realismo nominal se dará no fim da fase da escrita pré-silábica.
- Ao ler palavras e orações, não marca a pauta sonora.
ESCRITA SILÁBICA: divide-se em escrita silábica e escrita silábica-alfabética.
Na ESCRITA SILÁBICA, a criança supõe que a escrita representa a fala. É a fase que se inicia o processo de fonetização; nesta fase, ela tenta fonetizar a escrita e dar valor sonoro as letras. Cada sílaba é representada por uma letra com ou sem conotação sonora. Em frases pode escrever uma letra para cada palavra. Desvincula o objeto da palavra escrita.
TOMATE= RTO
CAVALO= BUT
PÃO= TU
TOMATE= TMT / OAE / TAT / OME
CAVALO= CVL / AAO / AVO / CAL
PÃO= PU / AO
Na ESCRITA SILÁBICA-ALFABÉTICA a criança apresenta uma escrita algumas vezes com sílabas completas e outras incompletas. Ou seja, ela alterna escrita silábica com escrita alfabética, pois omite algumas letras.
TOMATE = TMAT
CAVALO = CVALU
PÃO = PA
O CAVALO PISOU NO TOMATE = UCVALUPZONUTMAT
ESCRITA ALFABÉTICA: a criança faz a correspondência entre fonemas (som) e grafemas (letras). Ela atinge a compreensão de que as letras se articulam para formar palavras. Escreve como fala, ou seja, vê a escrita como transcrição da fala, não enxergando as questões ortográficas.
No processo de construção da aprendizagem da língua escrita, do ponto de vista da Teoria da Psicogênese, o/a psicopedagogo/a deve considerar que:
1. As hipóteses conceituais provisórias que as crianças fazem sobre a escrita não são “erradas”, “falta de conhecimento” ou até mesmo patológica. Devem ser consideradas como “erros construtivos”, já que é um processo de atividade constante em que a criança está elaborando hipóteses e alargando seu campo de conhecimento lingüístico.
2.O reconhecimento das hipóteses de escrita não deve se transformar em um recurso para categorizar as crianças, mas sim estar a serviço de um planejamento de atividades que considere as suas representações e atenda suas necessidades de aprendizagem.
3.A questão dos diferentes níveis, nas salas de aula de alfabetização, deixa de ser característica negativa para assumir papel de importância no processo ensino aprendizagem, onde a interação entre os/as alunos/as é fator imprescindível.
4. A criança depois que se apropria da escrita alfabética, enfrenta inúmeros problemas ortográficosne morfossintáticos, considerados normais para a fase em que se encontra. Porém, cabe ao professor/a fazer intervenções significativas para que ela se aproprie da escrita ortográfica.
Os principais problemas que emergem quando as crianças se apropriam da escrita alfabética são:
Leitura:
Confusão de letras (trocas).
Soletração sem aglutinação.
Decodificação sem compreensão.
Leitura soletrada
Escrita:
Transcrição fonética: tumati – kavalu = tomate – cavalo
Segmentação indevida: utumati = o tomate, com seguiu = conseguiu.
Juntura vocabular – uka valu = o cavalo, agente = a gente.
Troca do ão pelo am, i por u (e vice versa): paum = pão.
Ausência de nasalização: troca de m por n ou til (vice e versa): comseguiu – cõsegiu =
conseguiu.
Supressão ou acréscimo de letras.
Troca de letras / origem das palavras (etimologia): zino = sino, geito = jeito.
Escrita não segmentada: UKAVALUPIZONUTUMATI = o cavalo pisou no tomate.
Não registra silabas de estruturas complexas: os dígrafos, o padrão consoante consoante vogal, a vogal dos encontros consonantais: vido – vidro.
Escrita sem significado (letras aleatórias).
Frases descontextualizadas.
Textos sem seqüência lógica.
Escrita espelhada: d por b, p por q.
Repetição de elementos de ligação.
Hipercorreção: coloo – colou, medeco – médico